Crônica da esperança num país menos desigual
Artigo de Leomar Daroncho apresenta uma costura dos indicadores sociais com o “espírito” que embala os desejos do início do novo ano
O fim do ano e o início de um novo ciclo gregoriano exigem balanços e histórias com final feliz. Como num dos filmes bonitinhos de Natal no qual temos o batido enredo de correrias, reencontros, conflitos, acerto de contas, velhinhos como sábios conselheiros, superação, demonstrações de empatia pelo diferente (em geral acolhem um pedinte ou alguém muito estranho ao grupo familiar), perdão e reaproximação.
Na vida real, dados da Organização Não Governamental Oxfam indicam a tendência de piora do quadro que está na raiz do nosso drama social: a desigualdade. O relatório aponta alta de 11%, no número de pobres no Brasil, de 2016 para 2017. A renda dos mais pobres teve queda de 3,5%; a dos mais ricos, cresceu 6%. O país ganhou posições no ranking mundial da desigualdade da renda, consolidando a baixa mobilidade social.
A extrema desigualdade, com raízes na escravidão, produz a constrangedora constatação de que o patrimônio dos 6 brasileiros mais ricos equivale ao dos 100 milhões de mais pobres, parcela majoritariamente composta por negros e pardos que vivem na informalidade ou em subempregos.
O agravamento do persistente quadro de desigualdades, no período de festas, remete a um episódio real ocorrido em Brasília, há cerca de 15 anos.
Uma família humilde, pobre e muito unida por valores religiosos veio de Rondônia buscar tratamento especializado para um dos 2 filhos. A mãe ficou no hospital acompanhando o enfermo. O pai ajeitou-se no estacionamento com a outra criança. Ganhava a vida fazendo bicos no espaço público. A rotina da mãe gerou desconfiança. Monitorada, foi detida saindo com um volume sob o vestido. O radar do sistema é implacável com o estereótipo. Revistada, encontraram uma marmita. A confissão saiu imediatamente. Desde a internação, a mãe dividia a ração de acompanhante com a parcela da família que sobrevivia na rua. Alguém lembrou que, além do furto da mãe, a exploração da mendicância do filho sadio, pelo pai, colocara em risco o poder familiar. A intervenção de uma alma caridosa mobilizou o espírito natalino de um grupo solidário que socorreu a família aflita.
O enredo de criaturas aparentemente fora do lugar, desafiando a inclemente lei humana lembra o aniversariante que dividiu a contagem do tempo e a saga da sua família que, deslocada, buscou abrigo para que a mãe desse a à luz numa manjedoura.
A costura dos indicadores sociais com o “espírito” que embala os desejos do início do novo ano não é estranha ao mundo jurídico. A Constituição, que não respalda a perpetuação das mazelas, obriga a ações voltadas à construção de uma realidade menos desigual, sem que isso seja um desejo vago, um assomo inconsequente.
A induvidosa disposição constitucional surge já no preâmbulo. Perpassa os 250 artigos e ilumina os Títulos da Ordem Econômica e da Ordem Social. Portanto, é um desejo qualificado por forte conteúdo jurídico. Há fartura de dispositivos que servem como parâmetro de controle de validade de normas e ações que devem estar sintonizados com a promessa constitucional.
O descaso com o compromisso de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias, não pode ser considerado banal.
Tampouco pode ser eternizada a leitura parcial de dispositivos constitucionais, ignorando os comandos que determinam a construção de uma sociedade livre, sim, mas também justa e solidária, reduzindo as desigualdades e promovendo o bem de todos.
A sinceridade dos votos de paz e prosperidade, entre sorrisos e ceias, não pode ficar indiferente às ameaças concretas decorrentes da desigualdade. As Nações, que pretendiam ingressar num período de prosperidade, reconheceram isso em Versalhes, em 1919, quando afirmaram que a paz, para ser universal, e duradoura deve estar assentada na justiça social.
A atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT) é repleta de exemplos concretos de reversão de tendências quanto ao futuro de pessoas e coletividades vulneráveis, harmonizando a convivência numa ordem econômica civilizada, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o propósito de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.
É justificado o otimismo em relação à atuação convergente com a de empregadores brasileiros. No final de 2018, o MPT e o Instituto Ethos de Empresas firmaram acordo de cooperação visando à inclusão social de grupos populacionais mais vulneráveis no mercado de trabalho. A missão do Instituto Ethos de “mobilizar e ajudar as empresas a gerir seus negócios de forma socialmente responsável, tornando-as parceiras na construção de uma sociedade sustentável e justa” harmoniza-se com o desejo da Constituição brasileira. No mesmo sentido, deve ser reconhecido o movimento de empresários que pretende estimular as contratações, com carteira assinada, a partir de janeiro de 2019. Seria equivocado, e inconstitucional, defender práticas predatórias e abusivas como caminho para a prosperidade.
A nossa Constituição é otimista, sem ignorar as mazelas fixa o compromisso com ações voltadas a dias melhores. Feliz 2019 aos brasileiros de boa vontade, que agem com responsabilidade social!
Leomar Daroncho é procurador do Trabalho
Imagem: obra Retirantes, de Candido Portinari (1944)